segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Batman e Coringa pelos olhos de Nietzsche



O que são memórias? Lembranças do passado que volta e meia tomam o nosso pensamento? Devaneios de mentes delirantes? Marcas deixadas as quais não conseguimos nos livrar? Acredito que há inúmeras possibilidades, uma vez que se trata de uma ideia muito complexa e que não raras vezes nos causa tormento. A análise dos personagens Batman e Coringa nos garante um bálsamo de conhecimento acerca da nossa relação com a memória e o esquecimento, sobretudo, quando essa análise é feita sob uma perspectiva nietzschiana.

Para o filósofo alemão, as memórias fazem com que os homens fiquem presos a acontecimentos passados, isto é, a um campo inacessível, pois chega a ser um chavão a ideia de que não podemos mudar o passado. Sendo assim, os indivíduos que guardam memórias são propensos a criar promessas, as quais devem ser o vínculo presente que garante ligação ao passado.

Esses indivíduos possuem uma relação simbiótica com o passado, de tal modo que vivem em uma contínua ruminância das suas memórias, e, portanto, não conseguem satisfazer-se, rir, com o presente. Contudo, Nietzsche entende a capacidade do homem fazer promessas um problema, pois o seu cumprimento (ou tentativa) seria uma contradição a sua própria natureza.
“Criar um animal que pode fazer promessas – não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem? Não é este o verdadeiro problema do homem?... O fato de que este problema esteja em grande parte resolvido deve parecer ainda mais notável para quem sabe apreciar plenamente a força que atua de modo contrário, a do esquecimento”.
Os indivíduos apegados às memórias têm dificuldade em digerir situações vivenciadas no passado e prosseguir. No mínimo, suas vidas são mais dificultosas, pois se sentem com encargos a cumprir e, logo, não possuem tempo para diversão.

O Batman encontra-se nesse polo. O homem morcego como todo o seu ar sombrio, causador de medo, não consegue se livrar da imagem do pequeno Bruce que perde os pais e se vê inconsolável e impotente diante da força incontrolável da morte. Essa memória dolorosa torna-se a raiz da sua promessa de livrar Gotham do mal que levou seus pais.
“Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória.”
Entretanto, sabemos que o cumprimento de tal promessa não é fácil e, assim, Bruce deve dedicar integralmente seu tempo a um forte treinamento físico e mental. Numa cidade que é o palco do crime e da corrupção, só há um meio de não fracassar a promessa que fizera, a saber, ser incorruptível, ou seja, ter uma moral inabalável. Ao cometer qualquer ato que o corrompa, Bruce acredita que passaria do limite, pois uma vez tornando-se corruptível, afastar-se-ia da promessa e, consequentemente, das memórias e de seus pais.

O esquecimento por outro lado, é visto como condição necessária ao riso, pois é preciso esvaziar-se de todo o trágico que as memórias possuem, para que se crie a possibilidade da leveza. Ou seja, o riso e o esquecimento caminham juntos, digo mais, um não existe sem o outro. Pelo menos é assim que Nietzsche entende:
“[...] logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento.”
O esquecimento age como um desintoxicador que leva todas as impurezas e cria espaço para o novo. Esse indivíduo incapaz de guardar memórias é o Coringa. Para ele é muito mais interessante ser um eterno construir-se, uma infinidade de personas, uma caricatura preocupada apenas em ri da tragédia que é o mundo.

Ri do mundo, porque o debocha, ridiculariza o homem com as suas regras morais, as quais não servem para nada, pois a sua vontade de expandir-se não permite ser incorruptível como o Batman. Como não guarda rancor, vê o mundo como o espetáculo no qual é a atração principal. Para o Coringa as memórias são impedimentos ao riso, uma vez que:
“Lembrar é perigoso... eu vejo o passado como um lugar cheio de ansiedade. O “pretérito imperfeito”, como você chamaria. Ah, ah, ah, ah! As memórias são traiçoeiras! Num momento, você está perdido num carnaval de prazeres, com o aroma da infância, os neons da puberdade... No outro, elas te levam a lugares onde a escuridão e o frio trazem à tona coisas que você gostaria de esquecer!”
O entendimento do Coringa sobre a natureza humana é o que o torna um personagem tão peculiar e profundo, pois ele nos coloca o tempo inteiro contra a parede, fazendo-nos refletir, pois se o mundo é uma tragédia, por que se preocupar tanto com ele, guardando memórias e fazendo promessas? Por que não apenas se divertir? E nada mais prazeroso do que não ter memórias para se apegar – mais que isso – ser algo novo todos os dias.

A visão do esquecimento como positiva para Nietzsche, consiste na sua análise do homem e na sua incapacidade de fazer o bem, pois o homem não se destaca pela generosidade. Desse modo, agarrar-se ao passado, às memórias e fazer delas a raiz de promessas na qual se busca a paz e a justiça em um mundo corrompido chega a ser cômico. Por isso a luta do Batman é uma luta sem fim, não há como restaurar o que não quer ser restaurado.

No fim das contas, o homem morcego sabe que a sua promessa é inatingível em sua totalidade, contudo, as suas memórias marcadas pela dor, regozijam-se nas lembranças dos seus pais, que eram pessoas boas. Esse fato lhe traz esperança; esperança de que existam pessoas capazes de fazer o bem. O seu apego à memória relaciona-se a confiança que ainda possui no homem, na moralidade e na capacidade de fazer o bem.

O Coringa, por outro lado, se vê como um agente do caos, outros momentos como o próprio caos, pois o homem é um caos ambulante. A vida é vazia de sentido, de modo que é um erro passar por ela de modo tão duro, buscando corrigir problemas intrínsecos à existência da vida.
“Veja, as morais deles, o código deles... é uma piada ruim, caída ao primeiro sinal de problema. Eles apenas são bons na medida em que o mundo os permite ser. Eu te mostro: quando as fichas caírem, essas “pessoas civilizadas” irão comer umas às outras. Veja! Eu não sou um monstro! Eu apenas estou a frente da curva.”
Assim como Nietzsche, o Coringa entende o mundo como algo totalmente sem sentido, e vê no homem sua precariedade. A ordem e a justiça são extremamente frágeis e contraditórias. De fato, quando olhamos sob esse prisma, percebemos como a crueldade do homem o faz cometer atrocidades que fogem ao real; como a individualidade (agravada no mundo contemporâneo) transforma os homens em bestas.

O Coringa enxerga no mundo um espetáculo e ele é na grande maioria das vezes um espetáculo, em que uns fingem para os outros, sustentando uma rede de mentiras. Tudo isso acontece pela fragilidade da existência humana? O palhaço assassino acredita que sim. Para ele a existência é vazia e sem sentido, e como tentam dar-lhe um sentido, torna-se uma piada ruim, mas, ainda que seja uma piada ruim, por que não rir?
“Se eu vou ter um passado, prefiro que seja de múltipla escolha! Ah, ah, ah! Mas meu ponto é... meu ponto é... eu fiquei louco. Quando vi que piada de mau gosto era este mundo, preferi ficar louco. Eu admito! E você? Você não é nenhum burro, não é imbecil! Só precisa ver a realidade. Sabe quantas vezes estivemos perto da terceira guerra mundial? Sabe? Sabe o que disparou a última grande guerra? Uma discussão sobre quantos postes telegráficos a Alemanha devia aos seus credores de guerra! Postes telegráficos! Ah, ah, ah, ah, ah! É tudo uma piada! Tudo pelo que as pessoas lutam e dão valor não passa de uma monstruosa e insensata anedota! Então, porque você não vê o lado engraçado? Porque não está rindo?”
O mundo para o Coringa é ridículo, isto é, digno do riso; e somente os que esquecem podem rir, afirma Nietzsche. O homem morcego não possui a capacidade do esquecimento, ou seja, é um devoto das memórias, apegado ao passado, que busca em seus devaneios um meio de manter-se lúcido diante do mundo cruel e irracional que vivemos. Para tanto não ri, pois rindo, esqueceria a promessa de fazer de Gotham um lugar melhor.

Entregar-se ao caos que é o mundo é a saída mais fácil. Em muitos casos parece ser até a única saída, pois manter a sanidade em um mundo caótico não é tarefa simples. Pelo contrário, requer esforço, dedicação e esperança, mesmo que esta esteja no passado, nas lembranças, guardada na estante de um quarto dos fundos, com poeira e coisas que fazem mal, nos fazem tossir e perder o fôlego, mas que lembram pessoas importantes e sentimentos fortes, como o amor.

Condenar os que sucumbiram ao riso? Acho que não, afinal também precisamos rir e, portanto, esquecer; entretanto, os laços são construídos pelas memórias. Ainda que fiquemos mais fracos com elas, precisamos delas para nos ligar ao outro. Bruce se lembra dos pais para proteger e tentar levar o bem comum a Gotham e esse é seu calcanhar de Aquiles, explorado severamente pelo seu antípoda Coringa.

Gotham está em cada um de nós. A precariedade, a crueldade, a mesquinharia, o egoísmo, tudo aquilo que se expande e em muitos casos toma o indivíduo por completo. Entretanto, mesmo sendo  a vida na maior parte do tempo uma piada de mau gosto, tornar-se o Coringa é, como disse, apenas a solução mais fácil, já que esforça-se para tornar o lugar que se habita melhor, não é uma tarefa que todos parecem querer executar. E, assim, embora a maioria goste de se travestir de Cavaleiros da Justiça, a verdade é que somos como o Coringa, destruindo tudo ao nosso redor, protegendo somente a nós mesmos, sem qualquer tipo de lembrança ou apego, com a diferença de não possuir o senso de humor do palhaço.

4 comentários:

  1. O texto fica confuso ao final, pois Nietzsche propõe o esquecimento justamente para que as pessoas fujam do apego ao passado e tenham a possibilidade de rir. A ideia é ser um misto de super homem (a ideia do filósofo) e de Batman, e não ser um homem comum, que é justamente o que Nietzsche abominava e criticava em sua obra. Fazer a diferença, portanto é ser como Batman portanto, mas ter um pouco do esquecimento. Não acho que Coringa não tenha personalidade. Ao contrário, todos os vilões têm, senão não haveria sentido. É justamente sobre isso que Nietzsche enfatiza no seu texto: a capacidade de esquecer e rir. Isso é a total forma de se ter personalidade.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muitas pessoas me retrataram isso. Na verdade acho a análise complexa e, assim, cabe várias interpretações. Vejo esse leque interpretativo como positivo, pois é assim que o pensamento é construindo. Diria que numa visão puramente nietzschiana, a sua análise seja melhor que a minha. Mas, o final do texto não visa causar confusão, é apenas uma conclusão que leva a interpretação que faço do problema em questão. É um estilo que levo para os meus textos, e em certa medida, esse desconforto causado me deixa feliz, pois sei que o propósito maior do texto, qual seja, propor a reflexão foi feita. Abraços!

      Excluir