segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Crise do Estado e Natureza Humana: reflexões filosóficas em tempos líquidos


Vivemos em tempos de crise, uma fase de transição turbulenta nunca vista até hoje, não só a crise do Estado, mas também de todas as instituições sociais, e, por conseguinte as próprias relações humanas. Os problemas decorrentes dessa imensa instabilidade são renovados a cada dia, pois a atual conjuntura apresenta um dinamismo tão intenso que quase não conseguimos sentir o tempo.
Por mais contradições que existiram ao longo da história, os homens em seus tempos sempre tiveram um norte sobre o qual se guiavam, poderíamos chamar hoje esse guia de GPS, no entanto, o nosso GPS está sem qualquer utilidade, pois não tem nem ideia de para onde deve ir. A fonte motriz da vida dos homens já foi Deus, a metafísica, a religião, a razão, e hoje encontramos esse espaço vazio. Em tempos chamados de pós-moderno, ou como prefere Zygmunt Bauman, modernidade líquida nada é sólido, nada permanece fixo por muito tempo, chego a pensar que um homem pós-moderno de verdade não pode acreditar em nada por mais de 2 horas.

Mas o que tudo isso tem haver com a crise do Estado? Tudo meu caro, não podemos querer entender a política de forma separada das outras células que compõem o ser humano, afinal tudo está interligado. Acredito que quando o indivíduo acha que pode resolver tudo na política, ou torna-se ingênuo ou fascista, portanto, é indubitável a presença de todas as células para que possamos entender verdadeiramente o corpo, isto é, a sociedade e o indivíduo encarado como tal.

A política em si é entendida de maneiras distintas, pois uns entendem que a política é intrínseca ao homem, e outros entendem que a política é uma invenção do ser humano (como todas as coisas, inclusive Deus), nesse sentido a de se pensar que talvez o Estado como conhecemos seja uma invenção do próprio homem. Seja como for, para a manutenção da própria vida se faz necessária à convivência social. Nessa perspectiva, uma das discussões mais importantes de toda a história do pensamento humano, a saber, a natureza humana, pode nos fornecer uma boa chave para resolver esse problema.

Um das figuras mais emblemáticas do pensamento humano, a saber, Thomas Hobbes, debruçou-se sobre o entendimento da natureza humana, chegando à conclusão de que o homem é mau por natureza, tendo toda sua filosofia baseado no medo. Por outro lado, Rousseau embasou a sua filosofia de maneira totalmente antagônica a de Hobbes, ou seja, para ele a natureza humana é boa, no entanto é corrompida pela própria sociedade. 

Assim, enquanto para Hobbes a soberania deve ser do Soberano, pois os homens são movidos pelas suas paixões egoístas, Rousseau define que a soberania deve ser do povo, pois os homens têm a capacidade de praticar o bem, e promover a justiça social.

A atual constituição política é baseada na ideia de representatividade rousseauniana, o que na prática não acontece, sendo este o grande problema que desencadeou a crise do Estado, pois essa crise nada mais é do que a crise da representatividade. Os indivíduos não se sentem representados por aqueles que na realidade deveriam representar, dessa forma, a representatividade fica restrita ao voto que é depositado de quatro em quatro anos. Contudo, nem tudo é uma questão apenas política, há outras partes que compõem o todo. Essa é a parte que estamos inclusos.

Permitindo fazer das palavras de Sieyès as minhas, nas sociedades contemporâneas (comerciais) há uma enorme divisão do trabalho. Dessa forma, existe uma fragmentação social. Portanto, no reino do particularismo, não há tempo para pensar sobre coisas públicas, logo, precisamos de indivíduos que nos representem politicamente. A sociedade do jeito que está organizada nos obriga a criar a classe política. Dessa forma, o que me parece acontecer é um grande paradoxo (mais um), queremos que a ideia de Rousseau de soberania popular realmente aconteça, no entanto não queremos perder tempo algum para discutir política, vida pública, melhorias para a coletividade, isto é, sair das nossas bolhas cheias de individualidade e egos inflados.

A justificação para esse comportamento é encontrada em Hobbes, visto que nós hoje nos comportamos de forma totalmente individualista e egoísta porque os homens são “maus” por natureza, logo, parafraseando um dito popular “é melhor viver só do que mal acompanhado”, o que me parece no mínimo estranho, dado que cada vez mais se fala em desenvolvimento tecnológico, liberdade, redes sociais virtuais, e as pessoas querem tudo isso para viverem sozinhas? Portanto, apesar de nos organizarmos politicamente segundo a ideia rousseauniana, o nosso comportamento segue à risca a cartilha hobbesiana.

Talvez o grande diferencial do homem seja a capacidade, não é a toa que o direito civil define os indivíduos que realizam por si só todos os atos da vida civil, como absolutamente capazes. Acreditar que o homem só tem a capacidade de fazer o mal como acredita Hobbes é esconder-se por detrás de um problema ainda mais complexo, pois é muito mais fácil aceitar tudo (inclusive atitudes ruins e injustas) do que fazer e esperar dos outros, atitudes boas e justas. Acho impossível querer uma política limpa, honesta e justa, sem que nós façamos a nossa parte, a mudança é interna e deve ser feita por todos. 

Podemos não acreditar em Hobbes, nem em Rousseau, ou qualquer outro pensador que se dedicou ao estudo da natureza humana, mas é inevitável que essa seja a grande fórmula de ouro que devemos ter. Hoje esse problema é ainda pior porque vivemos um intenso inverno gelado, ou como diria Emerson, uma fina casca de gelo, de forma que não temos como parar, pois ao parar cairemos num imenso lago gelado Esse lago é o nosso vazio. Um vazio deixado por Deus ou pela ciência, e que necessita de uma agenda para esse inverno.

A política, a religião, a moral, a filosofia, a sociologia, o direito, a ética, a ciência, a economia, estão imbricadas, sem uma não é possível compreender a outra, portanto, não adianta querer colocar a culpa da crise do Estado na política, em Deus, ou no outro, afinal se pararmos e pensarmos, a sociedade é composta por homens, assim como todas as instituições que a formam. 

A formação de uma sociedade onde os ideais da revolução francesa possam se concretizar de fato, só será possível a partir do momento em cada um tenha consciência da sua responsabilidade enquanto produtores do caos que se tornou a vida. É até engraçado porque hoje vivemos bem mais do que há cem anos, no entanto, o grande problema não é viver muito, mas ter um sentido para viver, pois a nossa relação com o tempo é tão perturbada que vivemos o tempo inteiro com pressa, e a ideia de viver mais não condiz com o nosso modo de vida, visto que como diria Quintana:
“A eternidade é um relógio sem ponteiro”.
Se o Estado vive a crise da representatividade, o que tem levado a manifestações desde a primavera árabe, outono brasileiro até o movimento fora Dilma, é porque não estamos dispostos a fazer uma reflexão profunda e resolver o cerne do problema. Temos a possibilidade de encarar a vida de forma pessimista (corrente filosófica), acreditando que a vida é totalmente sem sentido; ser hipócrita, e ficar tentando conjugar coisas antagônicas ao mesmo tempo, como Hobbes e Rousseau (hipocrisias do homem moderno como falava Nietzsche); ou escolhermos uma via realista com esperança, onde nós somos capazes de tornar a vida melhor.

A palavra de ordem no mundo pós-moderno é crise, todas as instituições estão em crise, e esse é um fenômeno mundial (não ache que a grama do vizinho é mais verde), para que possamos ter uma política que nos represente de fato, e sacie nossa sede de justiça é necessário passar por todos os pilares constitutivos do homem. Talvez a resposta do que seja o homem esteja apenas em Deus como dizia Pascal, mas se fomos capazes de dizimar milhares de pessoas em guerras (sejam capitalistas ou no regime socialista), também somos capazes de formar o cimento apto a unir o tecido social, fazendo do seio social, inclusive o Estado e a política o nosso lar. 

Toda essa discussão, inclusive política sempre nos leva a pensar em justiça, a justiça como uma virtude inexistente no homem (como todas as outras da cartilha pessimista), contudo, para encerrar deixo as sábias palavras de Cícero como uma possibilidade de mudança:
“Se a justiça fosse apenas obediência temerosa a lei, as virtudes que não são isso porque são deliberações livre sobre a vida não existiriam. Ora elas existem.”

2 comentários:

  1. Bingo! Grande texto! Fico tão encantada em encontrar gente lúcida neste grande hospício em que estamos vivendo! Paz, amigo.

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    1. Muito obrigado Maria! Sinto que a recíproca é verdadeira.

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