quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Sou Visto, Logo Existo: Bauman e a Cegueira Moral


Pascal já dizia que o encontro mais doloroso da vida é entre o eu e o mim. Passados mais de trezentos anos, o homem moderno com toda sua inteligência e exuberância, ainda teme esse encontro, pois sabe que enxergar-se sem uma máscara pode não ser uma experiência das mais entusiásticas.

Essa teatralidade da vida encontra na mídia e nas redes sociais o seu principal refúgio, uma vez que estas criam uma atmosfera fantasiosa da realidade, a qual os indivíduos mecanicamente domesticados acreditam. Mas, não é uma fantasia no sentido lúdico-poético, que é necessário à vida, e sim, uma fantasia que distorce a realidade e cria escravos do sistema.

Pouco a pouco, nós somos despersonalizados e convertidos em peças iguais de um mesmo tabuleiro. Ou seja, todas nossas características são suplantadas, a fim de que haja uma padronização social. Mais que isso, essa padronização social deve ser exposta nas redes sociais, de modo que todos vejam o resultado de um sistema que cria um exército de pessoas “felizes”.

Há, dessa forma, o que Zygmunt Bauman chama de “erosão do anonimato”, pois nós, enquanto indivíduos com características próprias, deixamos de ser, para pertencer a um grupo homogêneo e, necessariamente, público. Assim, toda a vida é convertida em um reality show, em que todos veem o que faço ou deixo de fazer, como se houvesse alguma diferença, já que nesse modelo “integrativo”, todos falam e se comportam do mesmo modo.
“Tudo o que é privado agora é feito, potencialmente, em público – e está potencialmente disponível para consumo público.”
Entretanto, não há integração alguma, pelo contrário, há uma alienação, em grande parte, voluntária a um sistema que cria autômatos convergentes nos mesmos sonhos, desejos e sentimentos. O problema agrava-se ainda mais com a necessidade de exposição, uma vez que nessa sociedade confessional, o cogito cartesiano ganha novo sentido, convertendo-se em um – “Sou visto, logo existo”.

Assim sendo, todos aqueles que de algum modo buscam fugir dessas amarras, acabam sofrendo constantemente punições de uma sociedade que tem como pedra angular a “liberdade”. Em outras palavras:
“A participação na sociedade confessional é convidativamente aberta a todos, mas há uma grave penalidade para quem fica de fora. Os que relutam em ingressar são ensinados (em geral do modo mais duro) que a versão atualizada do cogito de descartes é “sou visto, logo sou” – e quanto mais pessoas me veem, mais eu sou...”
Ser um indivíduo com personalidade e ideias próprias está fora de questão, assim como se negar a fazer da sua vida um reality show, preservando a sua intimidade para quem é íntimo. A modernidade líquida, o admirável mundo novo ou como queiram chamar, descaracteriza, despersonaliza e desindividualiza as pessoas, como se estas fossem produzidas em série e não possuíssem idiossincrasias que as diferenciem de qualquer outra.

Aplaudimos o desencantamento da vida, acumulando likes em pontos comum. Padronizamos o comportamento e escondemos a individualidade em um quarto escuro. Talvez seja por medo de sentir-se sozinho que nos tornamos marujos de um barco que caminha sempre na mesma direção. Talvez seja pela vontade de fazer o mundo lembrar-se da nossa existência. Mas, em um barco onde todos são iguais, talvez nem você saiba quem é.

15 comentários:

  1. Cara, que texto lindo. É único o modo que você consegue expressar o que pensa (e muitas vezes o que eu penso) através de simples palavras que acabam ultrapassando até mesmo o que dantes tinhamos pensado.

    ResponderExcluir
  2. Olá, Erick
    Parabéns pelo texto!
    Encontrei no blog conti e cheguei até aqui pra conferir mais coisas.

    Simplesmente ótimo, retratando esse comportamento coletivo sem surpresas em que a dificuldade de comunicação genuina entre duas pessoas soh cresce pq parece q vão se diluindo as personalidades....

    Um abraço
    ;)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito obrigado Jana!
      As dificuldades de relacionamento, que são naturais, acabam se potencializando na medida em que há uma despersonalização das pessoas.
      Abraços!

      Excluir
  3. Texto interessantíssimo além de muito atual. Quase me perdi um pouco sem saber ali onde estava minha individualidade.Rrsss Porque as redes sociais modificaram todos estes conceitos de individualidade, público e privado etc etc. De tal maneira que as influências são tão fortes - principalmente as negativas - que não são muitos aqueles/as que tem personalidade ou individualidade forte o suficiente ou mesmo uma cultura própria para formar um pensamento mais independente. Assim, o termo "maria vai com as outras" cola muito bem naquilo ou nisso que eu gostaria de explicar e que entendi da importante mensagem deste texto.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito obrigado! Essa expressão sintetiza muito a vida de rebanho que levamos.
      Abraços!

      Excluir
  4. Excelente Texto Erick, parabéns!
    Até que enfim encontrei alguém com a mesma visão!!!

    ResponderExcluir
  5. Linda reflexão! Infelizmente estamos no meio dos caos. Precisamos de muita resiliência para sobreviver a tudo isso. Mas felizmente ainda podemos escolher novos grupos. Eis aqui a possibilidade do "desapegar" - diminuir a vaidade e evitar o consumismo!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado Raquel! Bota resiliência nisso, rsrs.
      Abraços!

      Excluir
  6. "O problema agrava-se ainda mais com a necessidade de exposição, uma vez que nessa sociedade confessional, o cogito cartesiano ganha novo sentido, convertendo-se em um – “Sou visto, logo existo”.

    Mais um ótimo texto! Tenho a impressão de que muitos daqueles que sentem a necessidade de postar constantemente suas vidas particulares nas redes sociais - o que vai desde suas selfies, até fotos de suas refeições - o fazem para abafar a consciência de que não estão vivendo da forma como realmente deveriam. Que forma é essa? Qualquer uma que levasse ao desenvolvimento pessoal (e não estou falando do mercado de trabalho). Uma coisa é certa, esse aprimoramento como pessoa não virá da ostentação de uma vida que às vezes nem se tem – ou, ainda que se tenha. Ou de mensagens lindas, copiadas de sites de pensamentos prontos, os quais muitos postam, mas, às vezes, notadamente não entendem nem comungam. A realidade virtual se tornou um mundo alternativo, onde todos são bonitos, inteligentes, felizes e satisfeitos. Um mundo alternativo usado como válvula de escape para suportar o mundo real.

    ResponderExcluir
  7. Que texto! Não me canso de ler.. Parabéns Erick, são pequenos oásis como este, que me lembram que sou um desajustado, que não faço parte do rebanho e adoro isso! Hehehe. Grande abraço.

    ResponderExcluir