Há bem pouco tempo, o cineasta Alejandro González Iñárritu nos apresentou o filme Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância), no qual questiona entre outras coisas, o que é a felicidade e qual o papel da ignorância nesta. Ao longo do pensamento humano, essa discussão já obteve várias interpretações, mas, de fato, a ignorância parece ser um elemento que contribui para a felicidade do indivíduo ou no mínimo na sua não infelicidade. Isto é, parece haver uma relação em que quanto menos o indivíduo busca livrar-se do seu não saber (ignorância), mais propenso à felicidade estará, pois terá menos motivos para desconfiar ou questionar aquilo que lhe é apresentado.
Essa
questão é suscitada no livro distópico de Ray Bradbury, Fahrenheit 451. Nessa sociedade, os livros são proibidos, uma vez
que são vistos como fonte de infelicidade. Sendo assim, qualquer obra
literária, quando descoberta, deve ser queimada e essa prerrogativa pertence
aos bombeiros, que ao contrário do que conhecemos, põem fogo nos livros e nos
locais onde estes são encontrados. Um desses bombeiros é Guy Montag,
protagonista da história, um sujeito típico daquela sociedade, mas com algumas
inquietações existenciais.
As
inquietações de Montag vão ganhando espaço na medida em que se relaciona com
uma jovem chamada Clarisse, sua vizinha, que é totalmente diferente das pessoas
que conhece e habitam aquele mundo. A grande virada, no entanto, acontece
apenas quando Montag presencia uma situação, na qual uma mulher é queimada
junto com seus livros. Esse fato faz Montag rever todos os seus conceitos e
despertar da prisão que vivia. Desse modo, Montag percebe que a verdadeira
razão para que os livros fossem proibidos era impedir a libertação das pessoas,
já que sem o poder do questionamento, todos viviam sob o mesmo condicionamento,
resultando em uma massa de iguais, muito mais fácil de controlar.
“Devemos ser todos parecidos uns com os outros. Ninguém nasce livre e igual aos outros, como diz a Constituição, mas cada um é modelado conforme os outros; todo o homem é a imagem do seu semelhante e, assim, toda a gente fica satisfeita.”
Esse
condicionamento é o mesmo que se aplica à realidade que vivemos, já que para o
controle e manutenção do status quo é muito mais fácil tolher as peculiaridades
e idiossincrasias que formam as pessoas e convertê-las em autômatos que fazem
exatamente a mesma coisa. A publicidade cria modelos de “sucesso” e
“felicidade” que devem ser seguidos por todos aqueles que se julgam sãos, de
modo que todo aquele que não segue a manada é visto como antissocial ou
simplesmente um doente que precisa ser curado. Esse fato acaba sendo
facilitado, tanto no mundo distópico de Bradbury, como no nosso, pela educação
tecnicista, burocrática e programadora que se propaga, a qual se preocupa
exclusivamente com os “comos”, excluindo os “porquês” que, consequentemente,
levam a questionamentos sobre a realidade que o indivíduo habita.
“As aulas tornam-se mais curtas, a disciplina é relaxada, a Filosofia, a História, as línguas abandonadas, o inglês e a sua pronúncia abastardados pouco a pouco e, finalmente, quase ignorados. Vive-se no imediato. Apenas conta o trabalho e, após o trabalho, a dificuldade da escolha de uma distração. Para quê aprender qualquer coisa, além de carregar botões, ligar comutadores, enroscar parafusos e porcas?”
Ou seja,
busca-se criar um exército de pessoas completamente iguais e, por isso, a
educação não deve conter questionamentos, deve-se tão somente aceitar o que é
passado com obediência cega e total. Assim, não há espaço para os livros, posto
que estes levam aos porquês da vida, tirando o indivíduo do seu ponto de
conforto, do seu padrão, da sua”felicidade”. A inquietação que o indivíduo pode
sentir ao entrar em contato com fontes de conhecimento, como livros, é
altamente arriscado para os que detêm o monopólio da força, pois ao questionar,
o indivíduo se distancia de todas as fantasias e sedativos que lhes são dados e
toma conhecimento da prisão que habita.
Na nossa
sociedade, embora os livros não sejam proibidos, ainda há muito pouco interesse
em desbravá-los, bem como outras fontes de conhecimento, e isso se deve em
grande parte a educação tecnicista e aprisionadora que recebemos, aos
tentáculos lançados pelo mercado, mas também, a própria vontade de permanecermos voluntariamente servos do sistema, uma vez que ao quebrarmos a barreira da
ignorância, nos damos conta da nossa individualidade, assim como, da
precariedade e perversidade que cerca a existência humana, de tal modo que ser
idêntico aos outros ou estar feliz o tempo inteiro torna-se insustentável.
“Compreende agora de onde vem o ódio, o terror aos livros? Eles mostram os poros do rosto da vida.”
Sendo
assim, preferimos viver condicionados, aceitando obedientemente tudo que é
passado pelos nossos senhores, divertindo-se com todos os jogos que são postos
nas nossas gaiolas, a possuir uma subjetividade que proporcione a reflexão do
que somos e da realidade que vivemos. Preferimos estar presos a entorpecentes,
apenas para não enxergar a miséria e as angústias. Preferimos o bom e velho pão
e circo a nos livrar das amarras fantasiadas de felicidade que nos são
colocadas.
“A gente interroga-se sobre o porquê das coisas e, se se insiste, podemo-nos tornar muito infelizes.”
No livro,
todas as pessoas que passam (querem) a enxergar a realidade, são vistas como
antissociais, quando não, criminosas e, portanto, inimigas do Estado e da
sociedade. É isso que acontece a Clarisse, Faber, Montag e todos que não se
deixam dominar. O mesmo que acontece no mundo de Fahrenheit, acontece aqui, já
que os bons indivíduos são aqueles que voluntariamente servem a um sistema
opressor que fantasia um mundo de maravilhas sem qualquer tipo de incômodo.
Um lugar
onde a ignorância é completa e todos podem fingir ser felizes. Um mundo
perfeito de dominação. Um mundo em que as pessoas apenas “Citam marcas de automóveis, de fato, moradas de piscinas e, sobretudo,
dizem: Oh! Que bom! Mas dizem todos as mesmas coisas e ninguém tem nunca uma
opinião diferente”. Um mundo de indivíduos que se contentam em meter as
respostas na cabeça. Um mundo de homens irrisórios e vazios. Um mundo de iguais
desconhecidos. E, acima de tudo, um mundo de servidão voluntária que queima a
451º Fahrenheit livros, questionamentos, libertação, amor e poesia e se
reconstrói num mundo de cinzas feliz e obscuro.
Amigo, vejo todos os seus textos com muito bons olhos, mas, na verdade, observo sua proposta de resolução dos problemas muito vazias.Será que realmente os problemas abastados socialmente estão somente no campo da leitura? Claro, que são indiscorríveis as mazelas, contudo abranger mais seria plausível. Leia isso como uma crítica construtiva, e não uma depreciação. Abraço.
ResponderExcluirOlá! Todas as críticas, desde que com respeito são mais que bem-vindas. Bom, não é uma questão apenas de leitura, mas de estar aberto ao conhecimento e à formação de um senso crítico mais apurado. Lógico que o Estado deve fazer a sua parte, mas se o próprio indivíduo não busca o desenvolvimento maior da sua capacidade crítica, e isso passa indubitavelmente pela leitura em todos os seus aspectos, torna-se impossível ter mudanças positivas na sociedade. Obviamente que é somente a minha opinião e esta pode ser refutada. Enfim, é isso.
ExcluirAbraços!
Mas e as camadas sociais que não possuem condições de adquirir leitura de qualidade, bem como ser incentivados a isso?
ExcluirÉ a parte que cabe ou deveria caber ao Estado. Contudo, isso não acontece, pelo contrário, a própria educação que se propaga estimula a alienação, como ressalto no texto.
ExcluirExcelente redação! excelente reflexão!
ResponderExcluirObrigado Raquel!
ExcluirOlá! Eu amei a crítica e o comentario que você faz deste livro. Eu amo Fahrenheit 451 e acho que é um classico que todos deveriam ler porque nos faz refletir sobre o mundo atual. Faz pouco vi em um Fahrenheit 451 resumo que o livro terá um filme. Acho que é interessante ver um filme que está baseado em bons livros, acho que são as melhores historias, porque não necessita de muito para fazer uma boa produção. Espero que seja umas das melhores adaptações para ver.
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