A vida contemporânea parece
estar imbricada com um certo estado de desumanização, no qual perdemos a
capacidade de observar aquilo que acontece ao nosso redor. É como se tivéssemos
perdido a sensibilidade e, assim, tornamo-nos ocos e frios. Transformados em homens
de olhos secos que não possuem rios de lágrimas, deixamos a triste condição
Severina se instalar e criar morada. Deixamo-la tornar-se habitat natural dessa
desumanização. Diante disso, uma pergunta tem me incomodado: o que há de gente
em nós?
Somos seres precários e
finitos, de tal maneira que a vida nunca se apresentará em condições normais de
temperatura e pressão. No entanto, dada as condições, através do modo como nos
comportamos, conseguimos piorar a situação exposta, inclusive, levando a ideia
de Aldous Huxley de que este mundo seja o inferno de outro planeta.
Em larga medida o
inferno que habitamos está alicerçado no nosso egoísmo e individualidade, os
quais nos tornam personagens de Saramago, indivíduos com a cegueira branca, isto
é, cegos que nunca cegaram, mas cegos que podendo ver, não enxergam, já que
estão envoltos por uma segunda pele bem mais forte que a outra, que por
qualquer coisa sangra, chamada egoísmo.
Uma segunda pele que
nos aliena das labaredas em cada esquina e dos espinhos que ferem a cabeça de
outro ser que poderia ser chamado de humano. Uma segunda pele que banaliza o
mal e nos torna apáticos diante do horror que fingimos não ver todos os dias.
Em que ponto nos
perdemos? Como podemos achar o mundo exterior tão desinteressante, tão insosso,
a ponto de não nos indignarmos quando uma pessoa morre em uma fila de hospital
por falta de atendimento? Ou pior, quando centenas de pessoas morrem porque
existe um hospital pronto, mas o aparelho burocrático não o deixa funcionar?
Será que as regras são mais importantes que os jogadores? Qual o valor de um
ser humano? O que há de gente em nós?
Parece que estamos tão
saturados com o mal, que sequer percebemos ao andar na rua que existem crianças
pedindo dinheiro no sinal, enquanto outras passeiam na Disney; que, enquanto
milhares de pessoas morrem de fome, outras tantas fazem dieta. Como aceitamos
tamanha paradoxalidade, tamanho absurdo?
Mundo do absurdo, da
intolerância, da falta de empatia, do egoísmo, em que nada nos incomoda, nada
nos comunica, nada nos incita, no qual o horror se tornar show e é
espetacularizado diariamente, como no mundo distópico de Laranja Mecânica de
Anthony Burgess. Mundo em que pessoas morrem tentando sair de um país a procura
de um novo lugar para chamar de lar, enquanto outras escolhem onde querem
morar. E nós passando por esse mundo, como se estivéssemos em uma Timeline,
apenas “curtindo” ou não situações, sem de fato refletir, se indignar e, sobretudo,
se incomodar.
Incomodar, verbo
repetido intencionalmente até aqui, para que percebamos o quanto ele está em
extinção, já que não queremos nos incomodar. Queremos sentir prazer, sorrir o
tempo inteiro, sem qualquer tipo de dor ou “incômodo”, acima de tudo, se ele
vir de outra pessoa que queira romper a nossa segunda pele, que nos “protege” e
nos faz mais “fortes”.
Tudo o que queremos, como
diz Clarisse em “O Mineirinho”, é manter as nossas casas presas ao terreno, a
fim de que elas não estremeçam. É continuar fabricando deuses à imagem do que
precisarmos para continuar dormindo tranquilamente, os quais sempre tratam de nos
acalmar com o sentimento de que não há nada a fazer.
Tudo o que queremos é
continuar sendo os sonsos essenciais, os baluartes de alguma coisa e os cegos
que podendo ver não enxergam, para que não corramos o risco de nos entendermos.
“Porque quem entende desorganiza. Há
alguma coisa em nós que desorganizaria tudo — uma coisa que entende”. E
essa coisa que desorganiza tudo é aquilo que há de gente em nós, é aquilo que
rasga a segunda pele chamada de egoísmo e faz com que a nossa primeira pele se
incomode, é aquilo que faz com que os leitos dos olhos voltem a ter lágrimas,
para que possamos dar de beber a quem sofre, porque mesmo quando a água é
pouca, continuamos sabendo o que é sede e mesmo quando não nos perdemos, também
experimentamos a perdição.
Talvez Huxley esteja
certo e este mundo seja mesmo o inferno de outro. Acho que ele não tinha
certeza, mas estava incomodado com a ordem posta e procurava, como Clarice, a
coisa que desorganiza tudo, a coisa que entende, o que há de gente em nós. Ele
deve ter encontrado a humanidade no Selvagem do seu Admirável Mundo Novo; Ela
encontrou no Mineirinho, mas foram necessários treze tiros até que ela se
tornasse o outro, para que ela quisesse ser o outro, para que fosse o próprio
Mineirinho. Resta saber, quantos tiros são necessários para que sejamos o outro
e, então, saibamos, o que há de gente em nós.
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