Rousseau certa feita
disse que – “A liberdade pode ser conquistada, mas nunca recuperada”. As palavras do filósofo suíço podem soar forte, mas ao
questionarmos situações em que há cerceamento de liberdade, podemos perceber o
quanto ela faz sentido. Ao perder a liberdade o indivíduo parece desconectar-se
com a essência que o torna livre e, assim, retornar a situação em que se é
livre pode ser extramente complexa, seja qual for a situação de falta de
liberdade que o indivíduo se encontre.
Essa situação é retratada
no filme “Um Sonho de Liberdade” (The Shawshank Redemption) do
diretor Frank
Darabont, em que um banqueiro é condenado à prisão perpétua após matar sua
mulher e seu amante. Esse banqueiro é Andy Dufresne (Tim Robbins),
sujeito meio tímido, meio calado, mas extremamente erudito. Com o seu jeito
Andy vai aos poucos modificando o lugar, sobretudo, por ajudar Norton (Bob
Gunton), o
diretor da prisão, com as suas habilidades contábeis. O sujeito tímido também
faz amigos na prisão, em especial, Red (Morgan Freeman), o qual é o narrador-filósofo
da história.
Na
prisão, vamos conhecendo cada personagem e percebemos a humanidade que os
forma, de tal modo que rapidamente nos aproximamos deles, bem como, nos
acostumamos com as grades e muros da prisão. Como diz Red em determinado
momento – “A vida na prisão consiste em rotina e mais
rotina” – e, assim,
somos transportados para a prisão, como se estivéssemos ao lado de Andy e Red. Esse
sentimento de pertencimento não se dá somente pela boa construção dos personagens
e pela empatia que sentimos, mas também pelo modo realista que a prisão é retratada,
cheia de muros, grades, guardas e escuridão.
Desse modo, a trama
desde o inicio busca questionar o sistema prisional e o seu “modus operandi”.
Ou seja, de que forma aquele sistema prisional vê os presos e como se busca a
restauração dos delinquentes. Já inicialmente, percebemos a maneira que os
presidiários são submetidos ao ridículo perante os demais e a violência que sofrem
caso “perturbem” a ordem posta naquele local. Esses dois elementos são
utilizados como forma de despersonalização e domesticação dos presidiários, a
fim de que se acostumem com a prisão e se tornem institucionalizados, como bem
observamos no cartão de visita dado pelo Capitão Hedley (Clancy Brown), ao ser
indagado por um preso sobre o horário da comida.
"Vocês comem quando nós dissermos pra vocês comerem! Vocês mijam quando dissermos para vocês mijarem e vocês cagam quando dissermos para vocês cagarem. Entendeu, seu pedaço de merda?"
Sendo assim, o
indivíduo rapidamente esquece quem é, o que o forma, o que lhe apraz, esquece a
sua essência, o seu nome e se converte em um número. Não se trata de um
discurso abolicionista em que o indivíduo que comete um crime não deve ser
punido e ir para a prisão, mas sim de questionar o modelo prisional que é
empregado e a quem ele interessa. O sistema prisional, tanto no filme quanto na
vida, organiza-se tão somente pelo regime repressivo, em que o delinquente deve
pagar pelo que fez, incluindo, a destituição de sua personalidade.
Não há qualquer
compromisso com uma justiça restaurativa que busca reestruturar o delinquente,
permitindo não apenas o seu retorno à vida em sociedade, mas também a si mesmo,
de modo que possa se sentir como parte do todo e perceba que é importante para
o corpo social. Esse modelo pode ser visto como utópico e, portanto, impossível
de ser concretizado. Todavia, admitindo essa ideia, passamos a entender que o delinquente não é passível de ser recuperado e, assim, não há importância em
qual modelo prisional ele cumpra pena, já que o fim será sempre o mesmo, qual
seja, a sua não recuperação.
Ou seja, há um total
descompromisso com a restauração dos presos e, assim, a frase proferida pelo
diretor Norton ao ser indagado por Andy sobre a possibilidade de o Estado
repassar verbas para o investimento na Biblioteca da prisão faz todo sentido.
“Para eles só existem três coisas a se investir em uma prisão: mais muros, mais grades e mais guardas.”
Dessa maneira, a
liberdade vai sendo tolhida, até que seja esquecida e não somente pelo óbvio
dos indivíduos estarem cumprindo pena, mas, acima de tudo, pela
institucionalização que sofrem. A violência física deliberada a que são
cometidos os domestica e a violência psicológica os despersonaliza, uma vez que,
quando todos são tratados com um “pedaço
de merda”, de que adianta o indivíduo possuir um nome ou coisas que possam "fazê-lo" sentir-se um homem?
“O nome dele não importa mais, está morto.”
Mais uma vez, não se
trata de vitimizar o delinquente, mas, quando o indivíduo é visto como
irrecuperável e merecedor de um tratamento desumano em todos os sentidos,
invariavelmente já se torna uma vítima do sistema e, por conseguinte, incapaz
de retomar a liberdade. Alguns são incapazes por se tornarem delinquentes piores e outros por esquecerem quem são. Uns por estarem ainda mais inaptos à
vida em sociedade, outros por estarem inaptos a si mesmos.
Assim, não há justiça
restaurativa, tampouco recuperação e os presídios são cada vez mais “escolas”
do crime. Institucionalizado o presidiário se acostuma com o número que carrega
e este se torna a sua vida, de modo que se esquece rapidamente que há lugares
no mundo que não são feitos de pedras. A prisão se torna sua casa e de tanto
ter as asas machucadas, quando livre já não consegue voar. Dentro da prisão, o
indivíduo pode ser alguém importante, “Lá fora é só
um ex-presidiário com artrite nas duas pernas”,
incapaz de viver fora do ninho.
Devemos
questionar a quem interessa um sistema prisional que não recupera de modo algum
o delinquente, que se preocupa apenas em trancafiá-lo e submetê-lo a
violências, mas que é incapaz de implementar cultura, educação, arte, a fim de que
haja de fato uma restauração no indivíduo. No entanto, isso talvez seja utopia
mesmo, já que em um mundo de prisões invisíveis a regra é estar preso, seja em
uma prisão convencional, como Shawshank, seja aqui fora
com os muros e grades que brotam a cada segundo. E, assim, o sistema prisional
cumpre a sua função: automatiza seres humanos e os torna incapazes de recuperar
a liberdade como atentou Rousseau. Sinceramente, não é bem diferente do que
vejo aqui fora.
Parece ser muito bom.
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É uma obra-prima, um dos melhores filmes dos anos 90.
ExcluirBom dia! Como de costume, um ótimo texto.
ResponderExcluir“Não há qualquer compromisso com uma justiça restaurativa que busca reestruturar o delinquente, permitindo não apenas o seu retorno à vida em sociedade, mas também a si mesmo, de modo que possa se sentir como parte do todo e perceba que é importante para o corpo social”.
Infelizmente, sabemos que nossas cadeias servem apenas para que os infratores se aprimorem no crime (se é que se pode chamar isso de se aprimorar).
“Esse modelo pode ser visto como utópico e, portanto, impossível de ser concretizado”.
Um modelo diferente do atual não é utópico porque é exequível. Sabemos que o investimento em tal área é que não seria prioridade.
“O sistema prisional, tanto no filme quanto na vida, organiza-se tão somente pelo regime repressivo, em que o delinquente deve pagar pelo que fez, incluindo, a destituição de sua personalidade”.
Não paga de forma alguma pelo que fez, pelo contrário, gera prejuízos financeiros e sociais. Destitui-se de sua personalidade, adquire uma pior e/ou fortalece o lado negativo da que já traz consigo.
“(...) a frase proferida pelo diretor Norton ao ser indagado por Andy sobre a possibilidade de o Estado repassar verbas para o investimento na Biblioteca da prisão faz todo sentido.
‘Para eles só existem três coisas a se investir em uma prisão: mais muros, mais grades e mais guardas’”.
Exatamente. “Mais muros, mais grades e mais guardas” para reproduzir um modelo fracassado.
“’O nome dele não importa mais, está morto.’”
Muito provavelmente, no mundo em que ele passa a viver ganhará também um novo nome, ou melhor, um apelido. De preferência, um que faça alusão a suas habilidades criminais.
“E, assim, o sistema prisional cumpre a sua função: automatiza seres humanos e os tornam incapazes de recuperar a liberdade como atentou Rousseau. Sinceramente, não é bem diferente do que vejo aqui fora”.
Por aí. Formas diferentes de cerceamento da liberdade.
Obrigado Renato! Infelizmente a regra da vida são os muros, em diferentes escalas, de tal modo que a liberdade torna-se algo raro e quase irrecuperável. Discursos apenas repressivos são simplistas na medida em que não conseguem perceber que esse é o fundamento que retroalimenta o sistema e que atende a interesses de pessoas que não estão minimamente preocupadas com o bem comum.
ExcluirAbraços meu caro!
Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.
ResponderExcluirVerdade!
ExcluirTriste realidade.
ResponderExcluirExcelente texto.
Obrigado!
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